Portanto, estava armado o palco para uma batalha política descomunal quando, em 2016, o governo buscou promulgar regulações de amplo alcance para a indústria alimentícia, visando reduzir a obesidade e outras doenças. As medidas, que surgiram a partir das políticas para amamentação anteriores, incluíam alertas de publicidade para advertir os consumidores acerca dos altos níveis de açúcar, sal e gorduras saturadas, assim como restrições na comercialização para tornar menos tentadores alimentos altamente processados e bebidas açucaradas, em especial aqueles destinados a crianças.
Tomando como exemplos os esforços bem-sucedidos do governo para reduzir a venda de tabaco, as novas regulações proibiram marcas como Pepsi e KFC de patrocinarem eventos esportivos e culturais.
“Achamos que o Brasil poderia ser um modelo para o resto do mundo, um país que coloca o bem-estar de seus cidadãos acima de tudo”, disse Dirceu Raposo de Mello, então diretor da Agência de Vigilância Sanitária, mais conhecida pela sigla Anvisa. “Infelizmente, a indústria alimentícia não pensava do mesmo modo”.
As indústrias de alimentos atuaram de forma mais discreta, formando a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação, um grupo lobista cujo conselho de vice-presidentes incluía executivos da Nestlé, o gigante produtor de carnes americano Cargill e a Unilever, o conglomerado de alimentos europeu, dono de marcas como Hellmann’s, óleo Mazola e Ben & Jerry’s. A associação se recusou a comentar esta matéria.
Nos primeiros dias das audiências públicas, a indústria parecia estar disposta a negociar as regras, mas militantes de saúde afirmam que, por trás dos bastidores, os advogados e lobistas da indústria alimentícia conduziam silenciosamente uma campanha ampla para impedir o processo.
Acadêmicos financiados pela indústria começaram a aparecer na TV para acusar as normas de serem economicamente desastrosas. Outros especialistas escreveram artigos em jornais, sugerindo que o exercício físico e o controle mais rigoroso dos pais seriam mais eficazes que as regulações no combate à obesidade infantil.
O apelo mais eficiente da indústria, garantem os analistas, foi sua denúncia veemente das restrições de propaganda propostas como censura. A acusação teve uma repercussão especial devido às quase duas décadas de ditadura militar que terminaram em 1985.
Em uma reunião, um representante da indústria alimentícia acusou a Anvisa de tentar subverter a autoridade dos pais, afirmando que as mães tinham o direito de decidir o que dar de comer aos filhos, lembrou Vanessa Schotz, que advoga em defesa da nutrição. Em outra reunião, conta ela, um representante da indústria de brinquedos ficou de pé e criticou com veemência as regras de comercialização propostas, afirmando que elas privariam as crianças brasileiras dos brinquedos que às vezes vêm junto das refeições de fast food. “Ele disse que estávamos matando os sonhos das crianças, argumentando que elas valorizam mais os brinquedos do que os alimentos”, recordou Schotz. “Ficamos estupefatos”.
Repreendida pelas críticas da indústria, a Anvisa retirou, no final de 2010, a maioria das restrições propostas.Restou apenas uma única proposta para que os anúncios incluíssem um alerta sobre alimentos e bebidas que prejudicam a saúde.
Então vieram as ações judiciais.
Ao longo de vários meses, grupos díspares da indústria apresentaram 11 ações judiciais contra a Anvisa. Os requerentes incluíam a Associação Nacional das Indústrias de Biscoitos, o lobby dos produtores de milho e uma associação de empresas de chocolates, cacau e balas. Alguns dos processos alegavam que a regulação violava proteções constitucionais que garantiam a liberdade de expressão, enquanto outros afirmavam que não era competência da agência regular as indústrias de alimentos e a propaganda.
Embora aqueles que advogam em benefício da saúde afirmem que o litígio não foi totalmente inesperado, eles foram surpreendidos pela resposta do principal advogado do governo federal, o Advogado-Geral da União Luís Inácio Adams, nomeado pelo presidente da República. Pouco depois que as regras propostas foram oficialmente publicadas em junho de 2010, Adams uniu-se à indústria. Algumas semanas depois, um tribunal federal suspendeu as regulações citando a opinião escrita do advogado, que sugeria que a Anvisa não tinha a autoridade para regular as indústrias alimentícia e publicitária. Adams recusou-se a comentar esta matéria.
Raposo de Mello, ex-presidente da Anvisa, revelou que ficou atônito diante da mudança de orientação de Adams, dado o apoio de longa data do Advogado-Geral à Anvisa. Sete anos depois, com a maioria das 11 ações não solucionada, as regulações permanecem paradas.
“A indústria”, falou de Mello, “deu a volta no sistema”.
Enquanto isso, as indústrias de alimentos e de bebidas tornaram-se mais agressivas em sua tentativa de neutralizar a Anvisa, considerada seu maior adversário.
Em 2010, em meio à batalha contra as regulações propostas pela agência, um grupo de 156 executivos de empresas levou suas queixas à campanha de Dilma Rousseff, que concorria à Presidência.
Marcello Fragano Baird, cientista politico de São Paulo que estudou o lobby da indústria de alimentos contra as regulações nutricionais, contou que Rousseff garantiu aos executivos que iria intervir na Anvisa. “Ela prometeu que ‘limparia a casa’ quando se elegesse”, assegurou ele, acrescentando que soube do encontro por meio de entrevistas com os participantes.
Rousseff venceu a eleição e, logo que tomou posse, substituiu Raposo de Mello por Jaime César de Moura Oliveira, um aliado politico de longa data e ex-advogado da subsidiária brasileira da Unilever.
O porta-voz de Rousseff não aceitou que ela concedesse uma entrevista a respeito.
Em 2012, a Anvisa abrigou uma exposição itinerante de combate à obesidade que ocupou outros edifícios públicos do país.
Intitulada “Emagrece, Brasil”, a exibição exaltava o exercício físico e a moderação como chaves para combater a obesidade, mas minimizava a evidência científica dominante sobre os riscos de consumir muito açúcar, refrigerantes e alimentos processados.
O patrocinador da exposição? A Coca-Cola.
Alimentos irresistíveis, crianças com sobrepeso
Mais de 1600 quilômetros ao sul de Fortaleza, em uma creche pintada com cores vibrantes no centro de São Paulo, a maior cidade do Brasil, os efeitos da mudança nos hábitos alimentares são evidentes. A cada dia, mais de cem crianças enchem as salas de aula, onde cantam o alfabeto e cochilam em grupo.
Quando foi inaugurada, no começo da década de 1990, a creche, administrada por uma organização sem fins lucrativos, tinha uma missão específica: acabar com a fome de crianças de alguns dos bairros mais pobres da cidade.
Hoje, muitas das crianças que frequentam a creche estão visivelmente rechonchudas e, segundo a equipe de nutricionistas, preocupantemente baixas para a idade, resultado de dietas ricas em sal, gordura e açúcar, porém carentes em alimentos necessários para um desenvolvimento saudável.
Os programas de assistência a crianças incluem crianças de 10 anos com pré-diabetes e níveis de gordura alarmantes no fígado, adolescentes hipertensos e crianças de 3 anos tão malnutridas que têm dificuldade para andar.
“Estão chegando bebês, algo que nunca vimos antes”, revela Giuliano Giovanetti, que faz a divulgação e a comunicação para o centro. “É uma crise para nossa sociedade porque estamos criando uma geração de crianças com comprometimento cognitivo que não atingirão todo seu potencial”.
Cerca de 9% das crianças brasileiras estavam obesas em 2015, um aumento de mais de 270% desde 1980, de acordo com um estudo recente do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington. Isso coloca o país bem próximo dos Estados Unidos, onde 12,7% das crianças tinham obesidade em 2015.
Os números são ainda mais preocupantes nas comunidades atendidas pelo Centro de Recuperação e Educação Nutricional: em alguns bairros, 30% das crianças têm obesidade e outras 30% sofrem de desnutrição, segundo os dados da organização, que descobriu que 6% das crianças obesas também estão desnutridas.
As taxas crescentes de obesidade estão, em grande parte, associadas à melhora na economia, pois famílias com melhor padrão aquisitivo adotam os alimentos industrializados por sua comodidade, prestígio e sabor.
Pais ocupados, não para de oferecer aos filhos pequenos macarrão instantâneo e nuggets de frango congelados, refeições em geral acompanhadas de refrigerantes. Arroz, feijão, salada e carne grelhada – a base da dieta brasileira tradicional – estão sendo colocados de lado, segundo estudos.
O problema é agravado pela violência galopante nas ruas, que mantém as crianças presas em casa.
“É muito perigoso deixar meus filhos brincarem lá fora, então eles passam todo o tempo livre no sofá, jogando vídeo game e vendo TV”, disse Elaine Pereira dos Santos, 35, mãe de dois filhos de 9 e 4 anos, os dois com sobrepeso.
Isaac, de 9 anos, pesa 62,5 quilos e só consegue vestir roupas feitas para adolescentes. Dos Santos, que trabalha na farmácia de um hospital, encurta as calças para o menino.
Como muitas mães brasileiras, ela ficou contente quando o filho começou a ganhar peso quando pequeno, não muito tempo depois de ele ter provado a primeira batata frita do McDonald’s. “Sempre pensei que bebês deviam ser gordinhos”, explica. Ela satisfez com alegria os hábitos alimentares do filho, que incluíam idas frequentes a restaurantes de fast food e quase nenhuma fruta ou vegetal.
No entanto, quando o menino começou a ter dificuldades para correr e a reclamar de dor nos joelhos, dos Santos percebeu que havia algo errado. “A parte mais difícil é a gozação das outras crianças”, conta. “Quando vamos fazer compras, até os adultos apontam para ele e ficam encarando” ou lhe chamam de gordinho.
Na creche em São Paulo, profissionais da saúde acompanham o desenvolvimento físico e cognitivo das crianças, enquanto nutricionistas ensinam os pais a preparar refeições de baixo custo que incluem arroz, feijão e salada. Para algumas crianças, a cozinha experimental do centro é seu primeiro contato com alimentos como repolhos, ameixas e mangas.
Um dos principais desafios é convencer os pais de que seus filhos estão doentes. “Diferentemente do câncer ou outras doenças, esse problema não é visível”, explica Juliana Dellare Calia, 42, nutricionista da organização.
Embora membros da equipe afirmem que o programa tenha feito avanços significativos ao mudar a maneira como as famílias se alimentam, muitas crianças, no entanto, enfrentarão uma batalha contra a obesidade pelo resto da vida. Isso porque pesquisas sugerem que a desnutrição na infância pode levar a alterações metabólicas permanentes que reprogramam o organismo de forma que ele passa a transformar o excesso de calorias em gordura corporal com mais facilidade.
“É a resposta do corpo ao que ele entende como fome”, explica Dellare Calia.
O dinheiro fala mais alto
Mesmo que os especialistas em nutrição lamentem a crescente crise de obesidade, bem como os riscos potenciais de longo prazo, um aspecto da revolução dos alimentos processados no Brasil é inegável: a expansão da indústria beneficia pessoas de vários níveis sociais. A Nestlé, que afirma empregar 21 mil pessoas no país, começou há dois anos um programa de estágio que ofereceu treinamento para 7 mil pessoas com menos de 30 anos.
Perto da base da cadeia alimentar encontra-se da Silva, a vendedora de Fortaleza, que se sente otimista quanto ao futuro, apesar de seus crescentes problemas de saúde. A vida tem sido uma luta desde que deixou a escola aos 14 anos, quando engravidou da primeira filha. Agora ela quer arrumar o dente cuja falta lhe estraga o sorriso hesitante e comprar uma casa mais apropriada, uma que não tenha goteiras quando chove forte.
Ela agradece à Nestlé.
“Pela primeira vez na vida, tenho esperança e me sinto independente”, diz.
Está ciente da relação entre a dieta e seus problemas de saúde persistentes, mas insiste em que os filhos estão bem nutridos, enquanto aponta para os produtos da Nestlé em sua sala de estar. Ser uma vendedora da Nestlé tem outra vantagem: os biscoitos, chocolates e sobremesas que muitas vezes sustentam sua família são comprados por atacado.
Com uma lista crescente de clientes, Da Silva concentra-se em outro objetivo que visa a aumentar ainda mais o negócio.
“Quero comprar uma geladeira maior”.
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