Seria como impor sanções económicas à China? “Sim, basicamente é isso”, diz James Kraska. “Porque é que não tratamos a China como tratamos a Rússia? Estamos a falar de dois regimes igualmente autocráticos – a China até é pior, em vários aspetos, do que a Rússia. Porque é que os tratamos de forma tão diferente?”, pergunta.
No caso de Portugal, além das participações em grandes empresas da área da energia e financeira, por exemplo, a China tornou-se um importante credor do Estado português, sobretudo após a última crise da dívida europeia. Houve colocações privadas de dívida e o “suporte” em leilões de Obrigações do Tesouro que resultaram do “roadshow” que Fernando Teixeira dos Santos, então ministro das Finanças, fez na China, perto do Natal de 2010, quando Portugal tentava escapar ao pedido de ajuda à troika (que acabaria por surgir em abril de 2011). Não existem, porém, dados sólidos e atualizados que permitam calcular quanta dívida portuguesa, italiana ou espanhola o Estado chinês tem nesta altura.
As várias “avenidas legais” que os países têm para serem indemnizados pela China
A demanda judicial ao abrigo das Bilateral Investment Treaties (BIT) de que falou Agostinho Pereira de Miranda é uma das 10 “avenidas legais” que “concebivelmente estariam disponíveis” para forçar uma compensação por parte da República Popular da China, sistematiza a Henry Jackson Society. Estes acordos têm, regra geral, mecanismos de resolução de disputas que poderiam ser ativados, como explicou o advogado ligado à Miranda.
Além desta “avenida”, a Henry Jackson Society enumera mais nove hipóteses, a primeira das quais um processo por violação das referidas International Health Regulations (de 2005). O artigo 56.º desse regulamento prevê que os Estados tentem resolver a disputa de forma pacífica pelos meios à sua escolha: caso não seja possível, é aberto um processo junto da diretoria-geral da OMS, sendo que o caso poderia chegar à arbitragem do Tribunal Internacional de Justiça em Haia (não se sabe, na prática, porque nunca houve um caso destes).
Os Estados prejudicados poderiam também, afirma o think tank, recorrer diretamente a Haia, embora a China não seja um dos países que aceitam a jurisdição desse tribunal, que tem jurisdição sobre cinco dos sete países do G7, excluindo França e EUA. Todavia, mesmo que a China não aceitasse essa jurisdição, há um artigo (o 75.º) da constituição da Organização Mundial de Saúde que prevê que algumas disputas podem acabar por ser levadas a Haia. E aí, portanto, a China poderia ter de se submeter a uma decisão do Tribunal Internacional de Justiça ou, eventualmente, a uma decisão do Tribunal Permanente de Arbitragem, também em Haia.
A Henry Jackson Society destaca, também, uma outra via: a Organização Mundial do Comércio (OMC). É certo que este organismo se prende essencialmente com questões (e conflitos) relacionados com comércio externo, “mas, no passado, o mecanismo de resolução de disputas da OMC já foi utilizado como veículo para conflitos que não estavam diretamente relacionados com comércio”.
Há um exemplo recente que o think tank recorda: existe uma série de processos em curso na OMC relacionados com as hostilidades entre o Qatar e outros Estados do Golfo (processos que têm levado alguns a criticar a OMC por acharem que esta poderá estar a exceder as suas competências judiciais). “Seria, portanto, possível apresentar uma acusação junto da OMC alegando que a China, pela sua gestão do surto de Covid-19, se desviou das suas obrigações enquanto membro da OMC”, defende a Henry Jackson Society.
Outro aspeto positivo dessa abordagem é que a OMC costuma trabalhar muito rapidamente, normalmente demorando entre três meses e um ano a resolver a maioria dos casos. Esta seria mais uma das abordagens potencialmente frutíferas descritas pela Henry Jackson Society, a que o
think tank acrescenta mais algumas, sobretudo na área do direito nacional de países como os EUA e o Reino Unido (
pode consultar o relatório na íntegra nesta ligação, em pdf).
A OMS deveria ser a primeira a censurar a China pela violação das regras da ONU, defende o jurista Valério de Oliveira Mazzuoli
Vários juristas se têm interessado por este tema, podendo-se, também, salientar a análise do jurista brasileiro Valério de Oliveira Mazzuoli, que, num extenso trabalho publicado nas últimas semanas enumera os factos conhecidos e considera que “as notícias amplamente divulgadas na imprensa demonstram que os agentes do Estado [chinês] demoraram muito mais tempo do que o estabelecido para compartilhar as informações internas a nível internacional”.
A informação que existe “demonstra que a China violou as normas expressas no Regulamento Sanitário Internacional e, por consequência, a ordem global relativa à proteção da saúde humana, ensejando, por isso, responsabilização internacional pelos prejuízos causados à saúde pública e à economia de vários países do mundo”, argumenta Valério de Oliveira Mazzuoli.
O jurista sublinha, portanto, que a própria OMS teria de ser a primeira a censurar a China pela violação das IHR (que são, no fundo, regras suas, da ONU), o que não parece ser muito provável tendo em conta as últimas posições assumidas pelo organismo sobre o regime chinês e pelas iniciativas que a China tem tomado (e publicitado) de ajuda aos outros países.
“Você agradeceria ao pirómano pela ajuda depois de ele ter posto fogo ao quarteirão?”
O Observador perguntou a James Kraska se faz sentido avançar para estas medidas retaliatórias quando se depende da China para que cheguem a alguns países, como Portugal, equipamentos, desde ventiladores até equipamentos de proteção individual. Por outras palavras: a China não está, nesta fase, a ser útil e a ajudar os países? “Ajudar? Você agradeceria ao pirómano pela ajuda depois de ele ter posto fogo ao quarteirão? É melhor do que não estarem a fazer nada, mas não acho que compense o que fizeram”, responde.
O académico diz que o regime chinês está muito empenhado em controlar a “narrativa”, tanto interna como externa – chegando-se até ao ponto de terem saído notícias em meios de comunicação controlados pelo regime a sugerir que o vírus poderia ter sido trazido por uma delegação de espiões norte-americanos, entre outras teses.
“A China está numa guerra fria com os EUA e, provavelmente, também com a Europa”, assevera James Kraska. “Quem leu o livro ‘A Maratona de 100 Anos’, escrito por Michael Pillsbury, sabe que a China quer tornar-se a potência hegemónica no mundo” e, agora, “eles percebem como esta situação lhes degradou a imagem e estão a fazer o possível para corrigir essa narrativa”.