António Costa: depois dos pontapés a Camões, os coices a Shakespeare
por Brás Cubas // Dezembro 26, 2024
Categoria: Opinião
Temas: Destaque Opinião, Brás Cubas, Correio Mercantil
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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima oitava edição, o piparote de Brás Cubas segue para Bruxelas em direcção à dicção e demais tropelias linguísticas de António Costa..
Que me perdoem os mortos, e já agora também os vivos, se, escrevendo estas linhas, lhes pareço impregnado de um orgulho indiscreto. Mas não será o orgulho o motor da crítica, como a vaidade é o adorno do erro?
Não sendo eu sujeito a remorsos nem a vergonhas – privilégios singulares desta existência post mortem –, permito-me assim iniciar este ensaio com um pensamento que me ocorreu certo dia de Oitocentos, às margens do Mondego, enquanto praticava o meu francês: o orgulho, no seu âmago, é o coche do mérito, enquanto a vaidade é a poeira que dele se desprende quando percorre estradas mal calcetadas pela Fortuna.
Eis, pois, a distinção cabal que farei entre o meu orgulho linguístico e a vaidade – ou a falta dela – de certos figurões modernos, como o ex-primeiro-ministro de Portugal, agora transformado em presidente do Conselho Europeu, o ditoso António Costa, ou desditoso, cuja relação com a língua de Shakespeare evoca menos um coche do mérito e mais uma carroça aos solavancos pelas estradas do improviso. Devia ter ele se mantido a arranhar, menos mal, a língua de Molière.
Isto, para nem falar em demasia, mas vou dissertar, nas galhetas desferidas contra a augusta e luminosa língua de Camões, com recurso a autênticas espadeiradas lexicais desferidas em forma de erros de metaplasmos – esse caprichoso fenómeno linguístico que, por si, sempre foi doutamente cultivado como nova arte hermética, ao mesmo tempo inspirando os mais argutos filólogos e arrancando gargalhadas sonoras em tertúlias espirituosas, onde o vinho é generoso e o espírito se solta.
Ah, como diria um filósofo que nunca existiu, mas que bem poderia ter vivido no meu tempo: a língua, essa dama caprichosa, ora se veste de gala, ora se esconde sob trapos mal-alinhavados, como os que compõem as gloriosas traulitadas do nosso personagem em apreço. E que traulitadas, devo dizer! Nunca foram meras topadas linguísticas, mas autênticas investidas quixotescas contra os moinhos da gramática, perpetradas com o arrojo de quem acredita estar a esculpir, em mármore, o que afinal não passa de argila.
Tomemos, por exemplo, o glorioso “poder-lhe dizia” – uma construção tão ousada que parece evocar Camões ressuscitado para um encontro com Yoda, entre hexâmetros e sabres de luz. Já “competividade” soa a uma nova teoria económica, talvez inspirada em Adam Smith Guilhermino, meu estimado padrinho de nomeada, mas com uma pronúncia inovadora que só um génio pós-iluminista poderia conceber.
E “digitalição”? Ah, esta é quase poética: um tributo ao progresso, onde a tecnologia tropeça em si própria, caindo numa digitalização que se reduziu à sua mais honesta imperfeição. Não menos sublime é “prelenamente”, um advérbio de tal requinte que faz o “plenamente” parecer uma simplória redundância.
E há mais! “Insintizámos” poderia, num outro contexto, ser o hino de um povo que sintetizou os seus sentimentos numa epopeia trágico-cómica. Já “pulação adulta” é uma provocação filosófica: seria o crescimento populacional humano um salto ou apenas um tropeço? E que dizer do exótico “maior badéfice de sempre”? Soa a um contrato tácito com a mediocridade, um ‘badéfice’ ao qual, infelizmente, estamos todos habituados.
Mas a jóia da coroa é, sem dúvida, a “molibilição”. Ah, que beleza semântica, que revolução nas molas do pensamento! Aqui, o espírito entra em ebulição: esta palavra bem poderia designar o meu estado de espírito, suposto inventor da ‘emplastrofagia’ para a cura da melancolia, ao contemplar o mundo em movimento perpétuo e desconjuntado.
E assim, entre “precalidade” e tantos outros neologismos involuntários, sempre assisti, na voz de António Costa, a língua de Camões a rodopiar numa valsa entre o sublime e o risível, como que a lembrar-nos que o erro, afinal, é a mais humana das invenções – ou, como diria o dito, a ‘molibilição’ dos que sonham com a perfeição, mas tropeçam alegremente na poeira das palavras.
Tudo isto são autênticos monumentos ao génio criativo de António Costa, a reter para futuros compêndios de antropologia linguística. Se Camões choraria ou riria ao ver a sua língua tão retorcida? Ah, isso deixemos à imaginação dos leitores…
Mas não coloquemos já todos os equídeos à frente do meu coche – o orgulho que me enobreceu no culto das línguas –, a cuja construção dediquei anos de estudo e empenho. Lembro-me bem dos dias da juventude em Coimbra, quando, às custas de noites mal dormidas, me afeiçoei ao latim de Cícero, cujas Philippicae recitei tantas vezes que quase podia ouvir Marco António a tremer sob o peso da oratória. O latim, essa língua venerável que jaz agora sob o pé de estudantes desidiosos, foi para mim o pórtico de um universo cultural que me levou ao francês de Voltaire, e daí ao inglês de Shakespeare e depois ao italiano de Dante. Confesso que tive especial predileção por Voltaire, cujas Lettres philosophiques li na edição de 1756, adquirida em Lisboa durante uma das minhas estadias regadas a portos e saudades. Se era no francês que eu encontrava a elegância das ideias, foi no inglês que descobri a vastidão das emoções humanas. Shakespeare, com o seu Hamlet, ensinou-me mais sobre a melancolia do que todas as dissertações filosóficas que já folheei.
Por este motivo, afirmo que o orgulho linguístico radica no esforço e na Cultura. Aprender línguas não é um mero acto de conveniência social, mas um empreendimento hercúleo que exige paciência, dedicação e, acima de tudo, uma alma curiosa. Não é como aquela vaidade que decorre de circunstâncias fortuitas – o berço, o amiguismo, o acaso –, em que o sujeito ostenta um dom não seu, como um papagaio que repete palavras sem sequer as compreender.
Se o orgulho se constrói no esforço, como afirmei, o oposto acontece quando a língua é tratada como mera ferramenta utilitária. Com a presunção de quem acredita que, se um português pode tratar a língua-mãe ao pontapé, assim mais facilmente pode dar coices no inglês, tivemos o infortúnio e a vergonha de assistir a António Costa a aventurar-se, há uns dias, a falar a língua de Shakespeare, sem qualquer rede de segurança, num espectáculo mais caricato do que a trapalhada saída de um persa a traduzir holandês para ser entendido por um chinês.
Tudo aquilo foi mais confrangedor do que presenciar uma ópera interpretada por gatos de rua. Não tanto por ele dizer “more easy” em vez de “easier”, ou “chipa” em vez de “cheaper”, ou “means to payment” em vez de “payment methods”, mas sim por aquele sublime “concrete benefits” – como se os benefícios concretos somente pudessem ser vertidos em formas de betão, tal o peso da metáfora que, ao que parece, se perdeu entre o cimento das ideias e o movediço caos linguístico.
Mas se os faux pas de António Costa já se inscreveram com mérito, pelo seu demérito, no anedotário europeu, o futuro promete reservar-lhe novas e gloriosas epopeias de inépcia linguística. Acredito não ter ele desvendado todo o seu potencial. Os seus lapsos, os seus deslizes e os seus solecismos, essas pérolas de oratória improvisada, têm, em si, o poder de transmutar-se em cânone, em perpétuos ensaios de desvarios, ou em recitais eternos de malapropismos, onde a língua de Shakespeare será ora a vítima, ora a cúmplice das suas mais audaciosas incursões.
Imaginemos, pois, este intrépido orador a enfrentar novamente a língua de Shakespeare sem papéis, sem teleponto e sem tréguas, em épicas batalhas. Imaginem-no, com o mesmo ar confiante de quem sabe que pode transformar qualquer erro em espectáculo, entrando nos salões de Bruxelas para mais uma actuação memorável, digna de figurar nos anais das gafes linguísticas europeias. Cada cimeira europeia se anunciará como uma comédia involuntária
Num discurso inflamado sobre inovação, por exemplo, não será surpreendente ouvi-lo dizer: “Portugal will push into the future with strong knees!”, proclamando, com vigor, que os joelhos portugueses serão a chave do progresso. Os tradutores, presumo, hesitarão entre uma vergonhosa correcção ou a negligência de deixarem a assembleia acreditar que a modernização portuguesa inclui exercícios de agachamento colectivo.
Noutra ocasião, prevejo que Costa exaltará o papel do vosso país na União Europeia, com uma proclamação: “Portugal is a big player in the European onion market!”, fazendo os ministros da Agricultura dos países comunitários a imaginar camponeses lusitanos com sacos de cebolas nos corredores de Bruxelas.
E haverá, sem dúvida, o dia em que, desejando transmitir firmeza, Costa garantirá: “We will deliver more concrete actions by the end of the year!”. A plateia ficará a imaginar um comboio de pedra britada, areia e cimento a caminho da Comissão Europeia, com mudança de bitola, enquanto os engenheiros do Parlamento questionarão se as “acções concretas” incluem mesmo reformas betuminosas no edifício de Estrasburgo.
Mais tarde, numa cimeira sobre pobreza, o vosso António Costa declarará, certamente, com ênfase e a sinceridade que só ele possui: “We are committed to reduce the number of poors in Europe.”. Os irlandeses, conhecidos pela sua fleuma, esconderão um riso contido, que, no seu literalismo, quase soa a um plano de extermínio metafórico. E os restantes líderes, já habituados, acenarão com um sorriso, como quem vê uma criança orgulhosa do seu desenho torto.
Por fim, haverá um momento culminante, ou fulminante, quando Costa, querendo demonstrar liderança no Plano de Recuperação Europeu, disser com solenidade: “The recovery plan is our new Bible; we just need to interpret the scripts.”. O auditório ficará assim, na dúvida, se o vosso português é um Homem de Fé ou anda em preparativos para realizar uma produção cinematográfica.
E assim será o futuro do vosso António Costa: um contínuo desfilar de metáforas desajeitadas, fonéticas criativas e interpretações únicas do idioma de Shakespeare. E assim sendo, entre risos contidos e expressões perplexas, auguro que Portugal continuará a ser notado, nem que seja pelas aventuras linguísticas do seu pretérito primeiro-ministro – uma figura que, sem rede, sem dicionário, mas com muita convicção, transformará cada presença deste lusitano numa obra-prima da comédia diplomática. E assim mesmo, António Costa perpetua a tradição lusitana de deixar a sua marca no Mundo – não por palavras certas, on the contrary, mas sempre de forma memorável.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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