Saturday, November 28, 2015

... Sade, Salazar e o “Dalí de Lisboa”



Sade, Salazar e o “Dalí de Lisboa”

28 Novembro 2015
O livro "Editor Contra" lembra a incrível história de Fernando Ribeiro de Mello, que gostava de dar conferências de imprensa numa banheira e usou o erotismo para desafiar a ditadura. Isto faz-se?
É um livro cheio de humor e de provocação. Não se tratando de uma biografia, Editor Contra, de Pedro Piedade Marques, conta as histórias atribuladas da vida de Fernando Ribeiro de Mello, o homem que fundou a mítica editora Afrodite. O editor desafiou o Estado Novo com livros escandalosos, como a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, ou A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade.
Como seria de prever, tudo acabou em tribunal. No excerto que o Observador publica agora, dedicado a esse processo, entram grandes personagens da cultura portuguesa, como Luiz Pacheco, Herberto Helder, José Augusto França, Vitor Silva Tavares ou Cruzeiro Seixas.
Editor Contra é publicado pela Montag e está disponível para venda no site da editora e em algumas livrarias independentes de Lisboa, como a Letra Livre, a Ler Devagar, a Distopia, a Sr. Teste/Ennui ou a Pó dos Livros. Pedro Piedade Marques é designer gráfico, tradutor e editor.

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O livro tem 360 páginas e custa 25,75 euros.

“Um editor na banheira

Na noite de 15 de Dezembro de 1971, o rés-do-chão do número 10, Rua do Cabo – no bairro lisboeta de Campo de Ourique – assistiu a uma animação inaudita. Entre convidados e penduras, uma congregação de jornalistas, escritores, artistas e gente variada do monde lisboeta apertava-se numa área da casa transformada em palco de performance: uma “banheira” improvisada a partir de um tanque circular, cheio de água pré-aquecida, dentro da qual estava, sentado, um homem. Esse homem era o performer de serviço, mas também o anfitrião: Fernando Ribeiro Bento de Melo, “Fernando Ribeiro de Mello” para o mundo, editor, 30 anos. Acabado de se mudar do seu anterior poiso na Travessa do Combro, à Lapa, seria assim que estrearia a nova casa. O pretexto da performance: o lançamento de quatro livros da sua chancela, a Afrodite.
Apesar do aparato inesperado (que a tornou lendária), essa performance não era propriamente uma surpresa, vinda de quem vinha. Ribeiro de Mello era, por essa altura, um sobrevivente de duras batalhas com a férrea censura dos últimos anos de Salazar, mas também um homem que, muito pouco tempo depois de ter “aterrado” em Lisboa, menos de dez anos antes, soube criar e desenvolver uma persona e uma reputação sui generis, caracterizadas por um gosto da provocação e do aparato cénico. A afluência em massa à sua casa nessa noite de Dezembro (mais de quarenta pessoas) era disso a prova e a consequência. O ‘Dalí de Lisboa’ tinha, mais uma vez, público.

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Os jornais pasmaram: ‘Um editor na banheira’ ou ‘Ribeiro de Molho’
É curioso ver como essa imagem de ‘provocador’ escandaloso se reflectiu na imprensa dos dias seguintes. A Capital do dia 16, por exemplo (num texto de página 4 de Almeida Martins, com título revelador: ‘Ribeiro de molho’), tece duras críticas de tom moralista ao evento e seu organizador: ‘Que o Ribeiro de Mello tomou um banho é inegável. Não só corporal mas também mental. Porque isto é daquelas coisas: quem não é Dalí não lhe veste a pele. Por outro lado, sobre a sua opção de se banhar em público, dispensam-se os comentários: pois não é evidente que, neste mundo desnudo de sentido, cada um é livre de ganhar o dinheiro que muito bem entender?’
Já o Diário de Lisboa, referência na imprensa diária da capital por aqueles anos, tem uma postura mais ambígua, mais complexa. A foto (obrigatória, para tão insólito evento), que n’A Capital ocupara pouco menos de 1/8 da página interior, é atirada para a primeira página da edição desse dia 16, ocupando mais de 1/3 da mancha gráfica. O texto no interior, assinado por Fernando Assis Pacheco, não recusa a comicidade, o possível ridículo da situação, mas denota uma subtil compreensão do talento de Ribeiro de Mello para a auto-promoção. Sente-se, quase, uma empatia, uma afinidade com a encenação e os seus propósitos: ‘Sabe-a toda, e sabe que a sabe toda. Entre as dezenas de perguntas com que o bombardeiam deixa sem resposta precisamente aquelas que não entram no seu jogo de promoção. Também é menino para agarrar uma bisca no ar, dar-lhe uma volta e perorar de novo: «Se pago imposto de Pesca? Ora, meus amigos, quem sabe as pescas que eu faço nesta banheira? Por exemplo: pesco-vos a vocês, jornalistas…»’
Dois livros atrairiam sobre ele a sanha censória e a dura mão da justiça do Estado Novo: a "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" e "A Filosofia na Alcova" do Marquês de Sade.
Mas, afinal, que livros estava Ribeiro de Mello a apresentar nessa sessão líquida, para a montagem da qual o artista João Vieira e uma mão cheia de colaboradores e amigos do editor tinham contribuído com quase um dia de trabalho? Se Almeida Martins não refere nem um, já Assis Pacheco não deixa de os achar ‘giros’ e ‘anotar’ a História Trágico-Marítima e As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (os outros dois foram O Grande Livro de S. Cipriano e Anti-Duhring de Engels, que seria pronta e obviamente proibido pela Censura). (…)
[Veja nesta fotogaleria as capas de vários livros publicados pela Afrodite]

Uma antologia polémica

O Kama Sutra é o primeiro dos livros que Fernando Ribeiro de Mello lança em 1965, mas não é difícil imaginar que, a par da sua ainda principal actividade ‘pública’, a de diseur ou declamador de poesia, ele tenha passado todo esse ano a congeminar e preparar os dois livros imediatamente seguintes e que atrairiam sobre ele a sanha censória e a dura mão da justiça do Estado Novo: a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos Cancioneiros Medievais à Actualidade, organizada pela sua mentora Natália Correia, e A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade.



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http://observador.pt/especiais/sade-salazar-e-o-dali-de-lisboa/

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