Sade, Salazar e o “Dalí de Lisboa”
O livro "Editor Contra" lembra a incrível história de Fernando Ribeiro de Mello, que gostava de dar conferências de imprensa numa banheira e usou o erotismo para desafiar a ditadura. Isto faz-se?
É um livro cheio de humor e de provocação. Não se tratando de uma biografia, Editor Contra, de Pedro Piedade Marques, conta as histórias atribuladas da vida de Fernando Ribeiro de Mello, o homem que fundou a mítica editora Afrodite. O editor desafiou o Estado Novo com livros escandalosos, como a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, ou A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade.Como seria de prever, tudo acabou em tribunal. No excerto que o Observador publica agora, dedicado a esse processo, entram grandes personagens da cultura portuguesa, como Luiz Pacheco, Herberto Helder, José Augusto França, Vitor Silva Tavares ou Cruzeiro Seixas.
“Um editor na banheira
Na noite de 15 de Dezembro de 1971, o rés-do-chão do número 10, Rua do Cabo – no bairro lisboeta de Campo de Ourique – assistiu a uma animação inaudita. Entre convidados e penduras, uma congregação de jornalistas, escritores, artistas e gente variada do monde lisboeta apertava-se numa área da casa transformada em palco de performance: uma “banheira” improvisada a partir de um tanque circular, cheio de água pré-aquecida, dentro da qual estava, sentado, um homem. Esse homem era o performer de serviço, mas também o anfitrião: Fernando Ribeiro Bento de Melo, “Fernando Ribeiro de Mello” para o mundo, editor, 30 anos. Acabado de se mudar do seu anterior poiso na Travessa do Combro, à Lapa, seria assim que estrearia a nova casa. O pretexto da performance: o lançamento de quatro livros da sua chancela, a Afrodite.Apesar do aparato inesperado (que a tornou lendária), essa performance não era propriamente uma surpresa, vinda de quem vinha. Ribeiro de Mello era, por essa altura, um sobrevivente de duras batalhas com a férrea censura dos últimos anos de Salazar, mas também um homem que, muito pouco tempo depois de ter “aterrado” em Lisboa, menos de dez anos antes, soube criar e desenvolver uma persona e uma reputação sui generis, caracterizadas por um gosto da provocação e do aparato cénico. A afluência em massa à sua casa nessa noite de Dezembro (mais de quarenta pessoas) era disso a prova e a consequência. O ‘Dalí de Lisboa’ tinha, mais uma vez, público.
É curioso ver como essa imagem de ‘provocador’ escandaloso se reflectiu na imprensa dos dias seguintes. A Capital do dia 16, por exemplo (num texto de página 4 de Almeida Martins, com título revelador: ‘Ribeiro de molho’), tece duras críticas de tom moralista ao evento e seu organizador: ‘Que o Ribeiro de Mello tomou um banho é inegável. Não só corporal mas também mental. Porque isto é daquelas coisas: quem não é Dalí não lhe veste a pele. Por outro lado, sobre a sua opção de se banhar em público, dispensam-se os comentários: pois não é evidente que, neste mundo desnudo de sentido, cada um é livre de ganhar o dinheiro que muito bem entender?’
Já o Diário de Lisboa, referência na imprensa diária da capital por aqueles anos, tem uma postura mais ambígua, mais complexa. A foto (obrigatória, para tão insólito evento), que n’A Capital ocupara pouco menos de 1/8 da página interior, é atirada para a primeira página da edição desse dia 16, ocupando mais de 1/3 da mancha gráfica. O texto no interior, assinado por Fernando Assis Pacheco, não recusa a comicidade, o possível ridículo da situação, mas denota uma subtil compreensão do talento de Ribeiro de Mello para a auto-promoção. Sente-se, quase, uma empatia, uma afinidade com a encenação e os seus propósitos: ‘Sabe-a toda, e sabe que a sabe toda. Entre as dezenas de perguntas com que o bombardeiam deixa sem resposta precisamente aquelas que não entram no seu jogo de promoção. Também é menino para agarrar uma bisca no ar, dar-lhe uma volta e perorar de novo: «Se pago imposto de Pesca? Ora, meus amigos, quem sabe as pescas que eu faço nesta banheira? Por exemplo: pesco-vos a vocês, jornalistas…»’
Dois livros atrairiam sobre ele a sanha censória e a dura mão da justiça do Estado Novo: a "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" e "A Filosofia na Alcova" do Marquês de Sade.
[Veja nesta fotogaleria as capas de vários livros publicados pela Afrodite]
Uma antologia polémica
O Kama Sutra é o primeiro dos livros que Fernando Ribeiro de Mello lança em 1965, mas não é difícil imaginar que, a par da sua ainda principal actividade ‘pública’, a de diseur ou declamador de poesia, ele tenha passado todo esse ano a congeminar e preparar os dois livros imediatamente seguintes e que atrairiam sobre ele a sanha censória e a dura mão da justiça do Estado Novo: a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos Cancioneiros Medievais à Actualidade, organizada pela sua mentora Natália Correia, e A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade.
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