PJ Harvey: os 50 anos da rainha do desassossego
Os aniversários não costumam comover Isilda Sanches, mas Polly Jean Harvey fazer 50 anos pode ser bastante simbólico na era do "ageism", da celebração do corpo e da luta feminista.
Há décadas que todos somos bombardeados com estereótipos de imagem e comportamento que estigmatizam e remetem para uma espécie de “reforma antecipada” as mulheres com mais de 40 anos (no século passado eram os 30…) e finalmente a coisa começa a romper. Mulheres como Polly Jean baralham os códigos do supostamente “aceitável” ou “desejável” e mantêm-se relevantes para lá da idade e da imagem, e isso só pode ser inspirador, além de libertador.
Não é a única, é verdade. Se o foco deste texto fosse a aparência física, certamente implacável no universo pop, haveria que dissertar sobre Jennifer Lopez, que também tem 50 anos, ou Madonna (tem 61) mas, tratando-se de música do outro lado da barricada, veja-se Bjork, com 53 anos, iconoclasta como sempre, Kim Gordon, dos Sonic Youth, a editar o álbum de estreia a solo aos 63 anos, ou Cosey Fanny Tutti, dos Throbbing Gristle e Chris & Cosey, com 67 anos, ainda a fazer eletrónica pujante. Nem é preciso falar de Patti Smith… tem 72 anos. Todas elas, tal como outras, desafiam com música e atitude e estabelecem novos padrões, ou simplesmente ignoram os que existem e seguem em frente.
Podemos, obviamente, dizer que sempre houve mulheres “mais velhas” na música popular (Cher e Tina Turner têm respetivamente 73 anos e 79 anos, por exemplo, mas facilmente passam por ter menos umas décadas…) mas, até há bem pouco tempo, aos 50 entrava-se num quase deserto nostálgico cuja única alternativa parecia estar em cenários de casino a interpretar clássicos de sempre. Polly Jean não tem nada a ver com isso. Grita, com a voz e com a guitarra, tem silêncios, escreve livros, reflete e aponta o dedo… faz diferença.
Polly Jean Harvey nunca teve uma abordagem convencional, nem na música, nem na imagem, provavelmente nem na vida. Começou logo por expor as lágrimas, o sangue e as entranhas no álbum de estreia Dry. Na capa, a sua boca amassada pelo que parecia herpes labial, uma dentada ou o rasto da violência de um beijo (de um estalo?)… nada glamoroso mas incrivelmente íntimo, como as canções que tinha lá dentro, quase todas sobre uma relação que a deixou na miséria emocional mas a levou a criar um disco ainda hoje espantoso, dos melhores e mais intensos álbuns de estreia de sempre. Para mim, que ouvi o disco pouco depois de sair, mais ou menos com a mesma idade com que PJ Harvey o fez, e me revi naquele sofrimento extremado, violento e honesto, está ao nível de From Her To Eternity, de Nick Cave, que eu tinha ouvido na adolescência e projetado como suprassumo de todas as atribulações existenciais — tenho os gritos de “Oh My Lover” no mesmo patamar de catarse dos soltados por Cave na faixa título da sua estreia pós Birthday Party (talvez isso também ajude a explicar porque acabaram por trabalhar juntos e ter uma relação).
Polly Jean tinha 23 anos quando fez Dry, expôs-se com toda a força e vulnerabilidade e nunca mais vacilou. No álbum seguinte, seria ainda mais cintilante e intensa. Rid Of Me, produzido por Steve Albini, o homem dos Big Black e Shellac, que no mesmo ano trabalhou com os Nirvana em In Utero, é o disco em que PJ se agiganta e mostra confiante com canções como “50ft Queenie” e “Man Size”, explorando estridencias de voz e guitarra. O seu ar frágil e desajeitado, contrastava de forma dramática com a poderosa energia das canções. Isso nunca a abandonou, tornou-se uma força.
Lembro-me da única vez que a entrevistei, num hotel em Lisboa (acho que depois da edição de Is This Desire). Parecia quase afundada num sofá que condizia com a sua mala de mão (o que muito a intrigava…), franzina e de ar meio assustado, falava em tom baixo mas convicto das suas opções, da importância de absorver o negativo da vida no processo criativo, da dificuldade de ser mulher num mundo de homens e como era importante fazer a música que queria e ter controlo sobre ela, mesmo trabalhando com várias pessoas.
PJ Harvey tinha começado por ser a identidade de um trio: Polly Jean, Rob Ellis e Ian Oliver. Depois de Rid Of Me, passou a ser o diminutivo de Polly Jean Harvey, a mulher no epicentro da ação, mesmo quando havia outros músicos a tocar com ela. To Bring You My Love e Is This Desire, álbuns de 1995 e 1998, consolidaram-na como protagonista feminina do indie rock, muito embora Is This Desire vá bem para lá do rock. Em Stories From The City Stories From The Sea, disco feito sob a influência de Nova Iorque depois de ter assumido a personagem de Maria Madalena no filme “The Book Life”, de Hal Hartley, o seu estatuto é já inabalável. O disco, com uma canção com Thom Yorke (“This Mess We’re In”), ganha o Mercury Prize a 11 de setembro de 2001, o dia dos ataques terroristas nos Estados Unidos, onde PJ Harvey estava na altura.
Podia ter-se seguido uma mega digressão para capitalizar ganhos, ou um disco parecido para cumprir objetivos, mas a opção foi voltar ao básico e fazer tudo, ou quase, sozinha. Em Uh Huh Her toca todos os instrumentos (algo que não ouvíamos desde as 4 Track Demos que se seguiram a Rid of Me), menos bateria. Depois, abandona a guitarra e entrega-se à introspeção em piano assombrado com White Chalk. Polly Jean tem uma identidade própria que atravessa todos os discos e ultrapassa a voz obviamente reconhecível, mas nunca foi de repetir fórmulas, por isso tem uma carreira invulgarmente sólida e interessante. Por vezes, os desafios que faz a si mesma e a quem a ouve, resultam de forma imediata, em canções que agarram e nos sacodem sem pedir licença, mas mesmo quando o efeito é menos epidérmico, acaba sempre por ser absorvido.
Let England Shake, o oitavo álbum, é complexo e ousado, marca uma nova fase em que Polly Jean retira o foco de si mesma para o colocar no coletivo, sendo que o coletivo é a Inglaterra e o Mundo e as relações entre ambos. É um disco pré-Brexit, mas há quem veja nele essa profecia. Também recebeu o Mercury Prize em 2011. Continuando a olhar para fora, de si e também da música, Polly Jean lança, em 2016, The Hope Six Demotion Project, disco que nasce da colaboração com o fotógrafo Seamus Murphy em viagens pelos Estados Unidos, Kosovo e Afeganistão que também deram origem a um livro de poesia.
Nada parece ter sido calculado nestes mais de 25 anos de música de PJ Harvey. Os discos sucederam-se criando uma narrativa que se confunde com a sua história de vida em níveis que nós, como ouvintes, não conseguiremos nunca perceber, mas a aventura continua, às vezes sinuosa. O último trabalho de PJ Harvey é All About Eve, banda sonora para uma nova adaptação teatral do filme dos anos 50 de Joseph L. Manckiewicz. Na peça, Gillian Anderson assume o papel de Margo Channing, uma estrela de cinema envelhecida (tem 40 anos!) interpretada no filme por Bette Davis, que é manipulada por uma jovem e interesseira fã chamada Eve Harrington. Neste caso, PJ Harvey não está presa ao formalismo das canções, é livre de criar apenas peças instrumentais que sustentam a ação e que, mesmo sem vermos o desenrolar da trama, transmitem tensão dramática. Está num patamar bem diferente do ocupado por um disco de canções pop/rock.
Polly Jean Harvey podia eventualmente viver de best offs e esporádicas aparições ao vivo para interpretar os êxitos que a tornaram um ícone do rock alternativo, mas prefere continuar a reinventar-se para lá dos rótulos e das expectativas. Aos 50 anos, não é certamente a mesma mulher que fez Dry ou Rid Of Me, mas o desassossego continua lá, a servir de combustível criativo e a inspirar quem a houve. Parabéns Polly Jean. E obrigada pelo exemplo.
Isilda Sanches é jornalista e animadora de rádio na Antena 3
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